Para conter perdas no turismo e o avanço do mar, que tem “engolido” praias brasileiras, algumas cidades vêm investindo em projetos de alargamento da faixa de areia. Entenda o que são essas obras, quais impactos ambientais provocam e por que elas podem perder efetividade em um cenário de mudanças climáticas
Por Giuliana Capello
Menos de um mês após a conclusão da obra na Praia Central, em Balneário Camboriú, SC, no fim do ano passado, a população já comemorava os resultados: a largura da faixa de areia, sombreada pelos altos edifícios à beira-mar, foi ampliada de 25 para 70 m e o mercado rapidamente sentiu a valorização dos imóveis e empreendimentos na região. A maior obra de aterramento de praia da América Latina, debatida desde os anos 1990, custou 90,3 milhões de reais, despertou a atenção nacional e suscitou a pergunta: com praias brasileiras desaparecendo aos poucos da paisagem, a tendência é vermos mais intervenções desse tipo em outras cidades litorâneas?
Menos de um mês após a conclusão da obra na Praia Central, em Balneário Camboriú, SC, no fim do ano passado, a população já comemorava os resultados: a largura da faixa de areia, sombreada pelos altos edifícios à beira-mar, foi ampliada de 25 para 70 m e o mercado rapidamente sentiu a valorização dos imóveis e empreendimentos na região. A maior obra de aterramento de praia da América Latina, debatida desde os anos 1990, custou 90,3 milhões de reais, despertou a atenção nacional e suscitou a pergunta: com praias brasileiras desaparecendo aos poucos da paisagem, a tendência é vermos mais intervenções desse tipo em outras cidades litorâneas?
A praia de Copacabana, no Rio de Janeiro — Foto: Marchello74/Getty Images
“Primeiro, precisamos entender que a erosão costeira é um processo natural encontrado em quase todo o litoral do planeta, cujo fluxo próprio de sedimentos deixa as praias mais estreitas no inverno e mais largas no verão”, explica o oceanógrafo Eduardo Siegle, doutor em ciências marinhas pela Universidade de Plymouth (Reino Unido) e professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo, onde coordena o Laboratório de Dinâmica Costeira. O problema, ele diz, é que temos, de um lado, a pressão cada vez maior da ocupação humana nas linhas mais próximas à praia (inclusive sobre o estoque de areia e a vegetação de restinga) e, do outro, processos naturais, como o aumento de tempestades e do nível do mar, que geram um déficit sedimentar. “Isoladamente, muitos desses fatores não causariam o estreitamento da faixa de areia, apenas o seu deslocamento para o interior. No entanto, com a ocupação continental, há um confinamento da costa que não deixa espaço para esse recuo acontecer sem afetar a infraestrutura urbana”, argumenta.
A orla de Copacabana, no Rio de Janeiro, por volta dos anos 1920, antes de sofrer intervenções – ela é uma das várias praias brasileiras que passaram por processo de engorda artificial (aterramento) para aumentar a linha de areia e, assim, distanciar as águas da infraestrutura urbana — Foto: Augusto Malta/IMS/Divulgação
Em outras palavras, estamos há décadas substituindo por asfalto, concreto e prédios todo o ecossistema inteligente que atua como zona de abrandamento da energia das águas. Nesse panorama tão transformado pela ação humana, a engorda artificial da praia remedeia o quadro, repondo material sedimentar e alargando a faixa de areia mar adentro como proteção costeira. Por aqui, a estratégia não é novidade: no início dos anos 1970, a icônica Copacabana, no Rio de Janeiro, passou por um aterramento durante as obras de duplicação da Avenida Atlântica, que estendeu a largura da areia de 55 para 90 m.
Projetos de engenharia desse porte reúnem números impressionantes. Em Balneário Camboriú, por exemplo, homens e máquinas espalharam 2,2 milhões de m³ de areia ao longo dos 5,8 km de extensão da Praia Central. Uma draga extraiu todo esse material de uma jazida no fundo do oceano, a 15 km dali, e depois o transportou até perto da praia (em inúmeras viagens) para, então, bombeá-lo por tubos conectados ao local do aterro. “É muito importante que a areia utilizada tenha qualidades similares às da praia original, de forma a reduzir impactos ao habitat e garantir bons resultados. Além disso, deve estar o mais próximo possível para que o projeto seja economicamente viável”, pondera Siegle.
Diversas cidades na Europa e nos Estados Unidos já experimentaram soluções do gênero. Um exemplo imponente é o Sand Motor, uma mega-alimentação de praia concluída em 2011 na região holandesa de Delfland, onde vastas áreas situadas abaixo do nível do mar são severamente suscetíveis a inundações. Lá, 21,5 milhões de m³ de areia extraída a 10 km da costa formaram uma península de 128 hectares ao longo de 2 km de litoral – um amortecedor contra a subida das águas que custou 70 milhões de euros.
Ecossistemas afetados
Estudos e relatórios de impactos ambientais são fundamentais nesses casos. “Em áreas de recifes de corais, por exemplo, essas obras não deveriam ser realizadas”, sustenta a engenheira de pesca e doutora em ecologia marinha Ana Paula Prates, diretora de Políticas Públicas do Instituto Talanoa e analista ambiental do Ministério do Meio Ambiente (atualmente afastada).
O biólogo e professor do Instituto do Mar, da Universidade Federal de São Paulo, Ronaldo Christofoletti explica que os prejuízos ao meio ambiente acontecem onde há a retirada de areia e também na praia que a recebe. “No primeiro, ocorrem impactos típicos de dragagens: a água fica turva por um tempo e os organismos que vivem ali são muito afetados, assim como os que estão no local da engorda da praia, que acabam soterrados pelo novo material”, destaca o professor, que também é membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN), iniciativa da Fundação Grupo Boticário. Segundo ele, um projeto bem elaborado e executado tende a diluir as mazelas ambientais com o passar do tempo, por ser uma solução baseada na natureza e mais suave, digamos assim, do que muros de pedra e espigões construídos para contenção costeira. Mas há aqui um alerta. “Não devemos reocupar as novas faixas de areia com estruturas urbanas, sejam elas ciclovias, quiosques ou outras. Ao contrário, é fundamental realizar ações ligadas à restauração da vegetação de restinga e à reconstrução de um ambiente mais natural”, completa.
Ele cita o exemplo das praias de Ipanema e Leblon, no Rio de Janeiro, onde desde 2009 o Projeto de Recuperação da Costa Brasileira, do Instituto-E em parceria com a Osklen, criou mais de 1 hectare de canteiros (com 40 mil mudas nativas desse ecossistema) e transformou 6 mil m² de areia em restingas. “Essa vegetação ajuda a fixar as dunas, protege o litoral de erosões, ameniza a temperatura ambiente e age como barreira contra ressacas e ventanias”, defende Oskar Metsavaht, presidente do instituto e fundador e diretor criativo da Osklen.
Antes e depois: em Santa Catarina, a cidade de Balneário Camboriú teve sua Praia Central totalmente reformada em 2021, alargando a faixa de areia de 25 para 70 m – em outubro passado, menos de um ano após a entrega da obra de proteção costeira, surgiu uma escarpa de 1,80 m de altura ao longo de 150 m de extensão; segundo a prefeitura, que realizará uma contenção com geotubos e areia no trecho afetado, duas ressacas recentes e a acomodação natural do material colocado na praia explicam a ocorrência desse tipo de “degrau”, que está sendo monitorado — Foto: Daniele Schmitt/Getty Images e Graiki/Getty Images
Custos na linha do tempo
Entender o papel socioambiental das restingas e protegê-las parece custar bem menos do que soluções paliativas. Itapoá, SC, discute um projeto de engorda artificial para recuperar 18 km de praias em processo crítico de erosão. “A obra completa está orçada em 480 milhões de reais, sendo que o município arrecada 100 milhões de reais ao ano”, comenta o oceanógrafo Ricardo Ribeiro Haponiuk, ex-secretário de meio ambiente da cidade, doutorando em ciência e tecnologia ambiental e responsável pela Coordenação do Sistema Costeiro-Marinho da Associação Nacional de Municípios e Meio Ambiente (Anamma).
Recentemente, ele elaborou um estudo para a rede Observatório do Clima que revelou: dos 443 municípios costeiros do Brasil, 21% não têm Plano Diretor e 68% têm menos de 50 mil habitantes. “São cidades pequenas, sem estrutura técnica e financeira para arcar sozinhas com questões como essas, diferentemente do que aconteceu em Balneário Camboriú e na paranaense Matinhos, que tiveram ajuda do setor privado e do Estado, respectivamente”, reforça. Além do investimento inicial, há ainda os gastos de manutenção. “De tempos em tempos, é preciso repor parte da areia que o mar vai levando naturalmente. Em Matinhos, tempestades estragaram parte importante do que já tinha sido feito. Em alguns casos, essa reforma é do tamanho da obra original”, ressalta.
O engenheiro civil Marco Lyra, especialista em obras de defesa costeira, lembra que esses projetos requerem modelagens físicas e matemáticas feitas em poucos laboratórios do mundo. “Nem sempre as cidades investem nisso e o resultado é desastroso. Em Jaboatão dos Guararapes, PE, a manutenção custará quase o valor da obra. Conceição da Barra, ES, e algumas praias de Fortaleza seguem o mesmo caminho. E não faltam outros exemplos”, lamenta Lyra.
Palavra-chave: adaptação
Para Haponiuk, mesmo quando a cidade está consolidada na linha do mar e a engorda artificial parece ser a única solução, é preciso pensar em gestão de longo prazo. No último século, o nível do mar subiu 20 cm, e as previsões do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) estimam uma elevação de mais de 1 m até 2100. “Com quase 7,5 mil km de costa, o Brasil deveria estar bastante preocupado com a adaptação das cidades, porque os efeitos das mudanças climáticas já atingem muitas populações costeiras, mas os governos têm dado pouca atenção ao tema”, afirma a especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo, ex-presidente do Ibama, urbanista e advogada. Segundo ela, os municípios precisam elaborar planos específicos e medidas para afastar as construções da linha da praia, priorizando soluções baseadas na natureza e a recuperação do mangue.
“Nesse sentido, o ordenamento territorial é ferramenta importantíssima”, concorda Haponiuk. Em Itapoá, ele chegou a calcular dois cenários: o custo do alargamento da faixa de areia mais a manutenção do serviço por 50 anos, e o investimento necessário à desapropriação dos imóveis situados na primeira quadra (pouco verticalizada) das praias erodidas. “Sabemos que a segunda opção é polêmica, mas, na ponta do lápis, daria para fazer esse recuo de forma gradual e com efeitos mais significativos”, pondera.
“Pensando inclusive no turismo, não adianta ficar remendando as praias porque isso não vai dar conta do problema. Precisamos mudar a legislação urbanística municipal, algo demorado, e fazer valer as leis existentes que protegem mangues, restingas e a Mata Atlântica, além da que define o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro”, acrescenta Suely Araújo.
Ana Paula Prates conta que o Conservatoire du Littoral, do governo francês, está recomprando terrenos na costa daquele país para garantir áreas manejáveis no longo prazo. “Aqui, ao contrário, temos Atafona [no Rio de Janeiro] perdendo 40% da cidade para o mar e parlamentares tentando aprovar uma Proposta de Emenda Constitucional que acaba com os terrenos de marinha, áreas da União”, contesta ela, dizendo que esses ecossistemas são grandes aliados no combate às mudanças do clima.
“Manguezais e apicuns armazenam até cinco vezes mais carbono por hectare do que as florestas tropicais. Uma baleia equivale a mais de 35 mil árvores em termos de sequestro de CO2. Precisamos de políticas públicas de conservação dessa biodiversidade porque dependemos desses ambientes e espécies para viver, e não apenas para ir à praia”, conclui.
*Reportagem originalmente publicada na Casa Vogue de novembro.
FONTE: CASA VOGUE. GLOBO.COM
NOTA DE AGRADECIMENTO
Agradeço a Revista Casa Vogue, pela oportunidade de participar de um tema tão atual para as cidades litorâneas do Brasil, de um modo especial a jornalista Giuliana Capello.