A capital pernambucana continuará a conviver com os transtornos causados pela chuva nas próximas décadas e uma das razões é o descuido com o meio ambiente
Ocupação da cidade se deu com o aterramento de vários trechos iniciado no século 17 pelos holandeses. Foto: Rafael Martins/Esp.DP. |
Os estragos causados pela forte chuva que caiu sobre o Recife na última segunda-feira não encontram justificativa apenas na força da natureza. A forma como a capital pernambucana tratou seus mananciais, aterrando-os ao longo dos séculos, pode explicar o surgimento dos 160 pontos críticos de alagamento contabilizados pela Empresa Municipal de Limpeza e Urbanização (Emlurb) na cidade.
A primeira enchente oficialmente registrada no Recife aconteceu em 1632, com a “perda de muitas casas e vivandeiros estabelecidos às margens do Capibaribe”. Quase 400 anos depois, a história se repetiu e não há solução definitiva à vista para o problema, ou seja, o Recife deve continuar convivendo com os transtornos causados pela chuva nas próximas décadas.
Ações danosas tomadas pelo poder público e pela população contribuíram (e contribuem) para deixar a cidade debaixo d’água. Segundo meteorologistas, fenômenos climáticos extremos tendem a aumentar nos próximos anos. Não há como controlá-los. Para solucionar as inundações, então, será preciso melhorar o sistema de drenagem. Também é necessário que os resíduos sólidos não sejam descartados nas ruas e dar um basta nos aterros irregulares de rios, canais e mangues.
Impacto
Analisando mapas antigos, é possível perceber como o crescimento da cidade causou impactos visíveis sobre os mananciais do Recife, um estuário natural. A “Planta da cidade do Recife e seus arrabaldes”, confeccionada pela Repartição das Obras Públicas da cidade em março de 1875, mostra trechos de rios que “sumiram” na capital. A Planta da cidade do Recife e seus arrabaldes pode ser consultada na íntegra no site da Biblioteca Nacional (Quer vê-la? Clique aqui).
As ilhas do Retiro, Joana Bezerra, Leite e Suassuna, que apareciam como acidentes geográficos, perderam os isolamentos naturais após aterros sucessivos.
O arquiteto e urbanista Milton Botler ressaltou que isso aconteceu pela prática de acabar com os escoamentos de água da cidade ao longo dos anos. “Boa parte dos nossos manguezais foi aterrada. Deveríamos ser uma Veneza, cheia de canais, mas eles foram ‘entubados’. A água da chuva não tem para onde ir, causando os alagamentos”, explicou.
Já o arquiteto e urbanista José Luiz da Mota Menezes lembrou que, originalmente, o Recife é uma grande várzea, com pouca terra seca. “A natureza é equilibrada, mas as construções foram desordenadas e sobre o molhado. Não dá para colocar a culpa na chuva”, enfatizou o urbanista.
OS ATERROS REMONTAM AO SÉCULO 17
No bairro do Jiquiá, Zona Oeste da cidade, manguezal está sendo aterrado para construções irregulares. Foto: Brenda Alcântara/Esp.DP. |
O aterro mangues e alagados do Recife remonta à época do domínio holandês, no século 17. A prática, porém, não ficou no passado e ainda é recorrente. No bairro do Jiquiá, Zona Oeste da cidade, por exemplo, moradores denunciam que caminhões carregam entulhos e metralhas para aterrar o manguezal e levantar construções irregulares. “Quando vim morar aqui, existiam cerca de 2 km de área do rio para escoamento de água. Após os vários aterros, hoje, só existe uma manilha para vazão. A chuva não tem para onde ir e vivemos ilhados quando chove”, reclamou um morador que não quis ser identificado.
Em 1855, o presidente da Comissão de Higiene Pública, Joaquim D’Aquino Fonseca, já lamentava, no relatório “Bases para um plano de edificação da cidade”, a extinção dos “mangues e pântanos” que se estendiam de Olinda ao Rosarinho, de Afogados a Piranga, e eram escoadouro natural das águas da chuvas. O documento foi publicado na edição do dia 28 de agosto de 1855 do Diario de Pernambuco. Confira o relatório aqui.
Há 160 anos, D’Aquino destacava que “convém que as vias públicas possam ser percorridas com facilidade, mas também que, escoando-se com presteza as águas de chuva e mesmo as que procedem de certos usos domésticos, se conservem secas e não lamentas, constituindo verdadeiros charcos, como sucede nesta cidade durante o inverno ou depois de copiosas chuvas”.
“Amsterdam (foto) e Rotterdam são exemplos na prevenção de enchentes, com investimentos na manutenção de diques e canais e controle das águas”, José Luiz da Mota Menezes. Foto: Ana Cláudia Dolores/DP. |
O arquiteto e urbanista José Luiz da Mota Menezes pontuou que o problema dos alagamentos não é fácil de resolver e profetizou que a cidade ainda vai conviver com o problema “durante muito tempo”. Ele destacou as cidades de Amsterdam e Rotterdam como exemplos que devem ser seguidos pela capital pernambucana. “São cidades em deltas de rios e abaixo do nível do mar que não passam pelos transtornos que passamos”, enfatizou.
Linha do Tempo:
1632 – Primeira enchente oficialmente registrada na cidade, com com a “perda de muitas casas e vivandeiros estabelecidos às margens do (Rio) Capibaribe”.
1638 – Maurício de Nassau ordena a construção do Dique de Afogados, a primeira barragem no leito do Capibaribe para evitar as inundações constantes.
1854 – Após 72 horas de chuvas, a capital fica isolada do interior. A muralha que guarnecia a Rua da Aurora caiu.
1855 – O Diario publica o relatório “Bases para um plano de edificação da cidade”, onde se defende que, se fosse cumprido, o Recife talvez não passasse por mais um dia de alagamentos
1869 – Uma nova enchente destruiu pontes e foi retratada pelo pintor pernambucano Teles Júnior (1851-1914).
1932 – Na “Planta da Cidade do Recife e seus Arredores”, a Ilha do Retiro desaparece como acidente geográfico.
1966 – Pontes e barreiras não resistem à força das chuvas. Na capital e no interior, 175 pessoas morreram e mais de 10 mil ficaram desabrigadas.
1975 – Enchente histórica é registrada na cidade, seguida de boato de que a barragem de Tapacurá havia estourado e as águas iam invadir a capital.
1986 – Maior cheia do Recife depois que o volume de chuvas começou a ser medido. Foram registrados 235 mm só na capital pernambucana.
2010 – No dia 17 de junho, a forte chuva que caiu na Região Metropolitana do Recife deixou moradores de várias cidades ilhados.
2013 – O cenário caótico após a chuva que caiu no dia 17 de maio volta a deixar a cidade alagada. Caos nas ruas.
2016 – Chuva do dia 30 de maio deixa um rastro de destruição na RMR. Quatro pessoas morrem.
PREVISÃO É DE EVENTOS CLIMÁTICOS EXTREMOS
Segundo projeções, o Recife deve voltar a ser alvo de fortes chuvas que caem em poucas horas. Foto: Hesíodo Góes/Esp.DP. |
Projeções futuras apontam para a possibilidade de eventos climáticos extremos se intensificarem, e o Recife deve voltar a ser alvo de fortes chuvas que caem em poucas horas, deixando um rastro de destruição. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, da Organização das Nações Unidas (ONU), aponta que existe uma grande possibilidade de as chuvas ficarem mais intensas. As secas no Nordeste também devem se intensificar. O alerta acende, no Dia Mundial do Meio Ambiente, o debate sobre as formas de as cidades se prevenirem das consequências dos fenômenos meteorológicos.
É possível que 2016 termine com o título de ano recordista de calor, indicando novos parâmetros para a temperatura global na história moderna, alertaram cientistas norte-americanos no último dia 20. A previsão foi feita um dia depois de a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA) dos Estados Unidos divulgar que um novo recorde de temperatura global foi estabelecido em abril, pelo 12º mês consecutivo. O órgão informou que os primeiros quatro meses de 2016 foram os mais quentes desde 1880, quando se começou a registrar as temperaturas.
Hoje, os termômetros marcam 1,4 grau Celsius acima da média do século 20, que era de 13,7° C. A meteorologista Werônica Meira, professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), destacou que há dois fatores que levam aos transtornos após as chuvas intensas. “Existem os riscos, que são os fenômenos naturais. Não há como mudá-los. Por outro lado, há a vulnerabilidade social, que exige políticas públicas. Esse aspecto, sim, pode ser revertido”, afirmou.
Na tese intitulada Impactos Socioeconômicos e Ambientais dos Desastres Associados às Chuvas na Cidade do Recife, defendida em 2011, Werônica ressalta que o trimestre maio-junho-julho, de forma geral, tem os meses com os maiores registros de precipitação e com as maiores ocorrências de desastres. “Apesar dos eventos extremos de chuvas intensas serem observados principalmente entre os meses de março a julho, tais eventos também podem acontecer nas demais épocas do ano”, destacou a meteorologista no trabalho.
Segundo Werônica, as chuvas, hoje, se concentram em poucos dias ou até poucas horas, diferentemente dos anos anteriores, quando os períodos chuvosos se estendiam por todo o mês. “Não faz muito tempo que podíamos observar que o período chuvoso durava mais tempo. As chuvas eram mais fracas. Agora, em um dia, chove o esperado para todo o mês. A previsão para o Nordeste nos próximos 100 anos é que mais agentes extremos atuem na região”, comparou.
A meteorologista lembra que o Brasil é um país relativamente estável no que diz respeito aos terremotos e outros fenômenos que causam destruição em outros países. “Mas não podemos esquecer que, nos últimos anos, vem ocorrendo uma intensificação dos prejuízos causados por fenômenos de tempo severos, atrelado principalmente a quase ausência de planejamento urbano”.
DRENAGENS PARA MINIMIZAR OS ESTRAGOS
Limpeza de canais está entre as ações realizadas para mitigar estragos. Foto: Teresa Maia/DP. |
Chuvas como a da última sgunda-feira são “fora do comum” e o sistema de drenagem do Recife não foi dimensionado para episódios como esse. Foi o que afirmou o presidente da Empresa de Manutenção e Limpeza Urbana (Emlurb), Roberto Gusmão. Para minimizar os estragos causados por chuvas mais fortes que o esperado, ele informou que a Prefeitura do Recife tem realizado ações de drenagem para diminuir os efeitos dos temporais.
Durante a Operação Inverno 2016, a Emlurb realizou a limpeza de 22 canais, de onde foram removidas cerca de 7,3 mil toneladas de lixo. Já o trabalho nas galerias removeu, de janeiro a abril deste ano, 4 mil toneladas de resíduos. Dos 160 pontos críticos de alagamento da cidade, 26 foram solucionados desde 2013, de acordo com o órgão. Entre as áreas que inundavam e receberam ações de drenagem estão as ruas Princesa Isabel, Floriano Peixoto, Estrela do Mar e as avenidas Boa Viagem (entre o Parque Dona Lindu e a Praça de Boa Viagem) e Norte (nas proximidades da Fábrica da Macaxeira).
Para o longo prazo, o presidente da Emlurb acredita que o Plano Diretor de Drenagem Urbana do Recife vai ajudar a nortear as ações a serem realizadas pelo poder público. “A cidade tem que conviver com esses fenômenos climáticos e isso exige dos gestores públicos novos formatos de manutenção, estudos e novas formas de engenharia”, destacou.
Na avaliação dele, as ações já realizadas pela atual administração municipal trouxeram resultados positivos. “Algo importante que percebemos foi que, 24 horas após a chuva dessa segunda-feira, a cidade estava sem impedimento de circulação e não havia alagamentos graves na cidade. A rede de drenagem funcionou conforme esperado, ou seja, as medidas que tomamos deram retorno e estamos no caminho certo”, pontuou.
Fonte: Diario de Pernambuco